Não entendia quando meu pai me dizia: “Não vai sozinha, não! Não vai de short, não! Nem de minissaia! Não vai ou vai com seu irmão!”. Assim, passaram-se os anos, e eu sem me “descuidar”.
Eu queria poder sair sem correr perigo ou me arriscar. Mesmo sem entender ainda por que meu pai sempre dizia: “Não dê ‘motivo’, menina!”.
Um dia, na escola, um menino brigou comigo e ameaçou de me levar para uma obra abandonada perto da escola. Consegui não me “descuidar” e não dar “motivo” para ele não me machucar. Funcionou! Nada aconteceu.
Durante um jogo de vôlei, meu time estava ganhando. Eu era a levantadora e tinha o saque mais forte. Um grupo de meninos mais velhos ficou próximo à área do saque e começou a me dizer coisas horríveis. Comecei a errar todos os saques, e perdemos. Era por causa do nosso uniforme. O short era de helanca com elástico na perna. Parecia uma sunga, marcava muito dando o “motivo”, mas era o uniforme das aulas de Educação Física. Se não usasse, perdia ponto. Lembro-me que íamos com o short por baixo do moletom ou calça comprida, que só tirávamos no banheiro da escola e trocávamos, em seguida, depois da aula.
Já no Ensino Médio, comecei a andar de ônibus, o que passou a ser um novo desafio. Ônibus cheio já era outro “motivo”. Evitava aqueles horários de pico, saindo mais cedo ou chegando atrasada. Escolhia, inclusive, uma roupa folgada, pois meu pai sempre dizia: “Não saia de roupa apertada!”.
Até que um dia, um grupo de meninos se juntou na porta do ônibus quando eu fui descer. Tentei me defender, mas fui segurada, enquanto o motorista sem “poder” fazer nada, esperava eu me debater, até eu conseguir descer. Eu me perguntava: o que mais eu preciso fazer? Já estou de roupa folgada.
Evitava passar em rua que só tivessem meninos e sem mulheres adultas por perto. Não saía sozinha à noite, não ia a festas sem companhias conhecidas. Mas, ainda assim, não era o suficiente para “não dar motivo”. Em uma das vezes, num bar, eu e três amigas tivemos que nos retirar, porque um rapaz não entendia que queríamos ficar sozinhas e não parava de incomodar.
Em empregos que tive, escolas em que estudei, caminhadas na rua ou no parque já eram “motivos” para ter que desviar do inapropriado, indesejado e constrangedor.
Já adulta e casada, fui a um show com meu marido, porém fui de roupa folgada. Estávamos com um grupo de amigos. Os homens saíram para comprar cerveja e ir ao banheiro, enquanto as mulheres, aguardavam sozinhas. Um homem se aproximou e nos abordou. Dissemos: “Não!” e ele não entendia, porque estava bêbado. Resolvemos sair dali para não dar “motivo”, afinal de contas ele alcoolizado não entenderia mesmo.
Pensei: “devia ter ficado em casa. Isso só acontecia por ser mulher. Na próxima encarnação, quero nascer homem, e tudo ficará bem”.
Tudo isso não é problema perto do denunciado e declarado recentemente pela bailarina Clara Molina nas redes sociais, ou do julgamento do caso Mariana Ferrer, ou ainda sobre aquele caso das meninas violentadas, espancadas e atiradas do alto de uma pedra. Justificativa desse último: “Estavam sozinhas tirando fotos lá de cima. Queriam o quê?”, segundo um dos acusados.
Está certo dizermos que demos mais ou menos “motivos” diante de tais fatos? Eram nossas roupas? Era pelo que postamos nas redes sociais? É por que vamos sozinhas a festas ou lugares, ou ficamos por alguns minutos sós? É por que bebemos? É por que de alguma forma estamos facilitando, quando saímos? Por que não podemos ir e vir sem sermos importunadas ou assediadas? Até o primeiro “não!”, que seria normal, se o outro entendesse e processasse a resposta.
Quantos “nãos” escrevi numa narrativa que poderia ser recontada de forma totalmente diferente se apenas o primeiro “não!” fosse respeitado? Deixaria de existir qualquer que seja o “motivo” dado, alegado, insinuado ou posto em questão, tirando a responsabilidade do verdadeiro e único culpado. Daquele que não pode ser provocado ou responsabilizado pelos seus atos. Não seria esse a ser ensinado, educado, orientado para aprender a controlar seus instintos mais torpes – em ônibus, escolas, locais de trabalho – direcionados a qualquer mulher? Ou ainda, ao extrapolar os limites da justiça, poder ser julgado e, se condenado, ser punido pelos atos, sem atenuantes ou fatos irrelevantes ao caso?
Não penso mais em nascer homem para resolver o que eu achava ser o problema. Acredito que podemos mudar tais comportamentos masculinos, tendo em vista que já mudamos tantas outras ações, como a mulher poder: estudar, trabalhar e votar.
Atualmente, quantas mulheres trabalham na Justiça Eleitoral graças a outras do passado que mudaram o nosso futuro? Foram muitas as conquistas alcançadas, mas há muito a se fazer ainda.
O fato de ser comum para uma época não quer dizer que seja normal para a vida. Não é porque fazem que é normal. Precisa ser mudado, melhorado e aperfeiçoado para uma convivência saudável.
O desafio é o respeito mútuo entre os seres, que é necessário em todos os ambientes, sem qualquer distinção. É olharmos para cada ser humano respeitando e sendo respeitado. É o direito de dizer “não!” e o dever dele ser respeitado.
Não se trata de se submeter menos, mas de não se sujeitar mais a nenhum tipo de tratamento abusivo ou desrespeitoso.
Escutem o nosso “não!” para que o respeito esteja presente em todos os momentos do nosso cotidiano. Queremos ter o direito de ir, vir e estar, sem pensar que isso seja um “motivo”. Para todos os demais momentos que configurarem crimes, que seja aplicada a lei e a justiça, sem outros “motivos” irrelevantes ao caso.
Texto de Adriana Silva, associada da ANE